quinta-feira, 5 de julho de 2012

Fogos e Artifícios

Começa com uma faísca.

E então, mesmo que houvesse algo antes - e é claro que havia, assim como havia algo antes do escuro e do Universo e de Deus -, mesmo que houvesse, não seria possível encontrar vivalma capaz de recordar-se ou de afirmá-lo com absoluta certeza.


Começa com uma reação química.

A explosão que se segue é violenta, impetuosa, sanguinária, cega sem pudor e arde como ácido; é um primeiro nascer do Sol. Nossos olhos, castigados, lacrimejam em protesto; as mãos correm a proteger o rosto. As lembranças são dilaceradas pela luz e gritamos a nossa agonia, infinita até o misericordioso instante em que nos acostumamos à claridade.

Demora, é bem verdade, mas um dia nos aventuramos a espiar por entre os dedos que nos tapavam a visão, baixamos devagarinho as mãos e deixamos que o inevitável aconteça. Aprendemos a amar a sensação cálida em nossa pele, os reinos de raios solares onde antes havia somente sombra.

Aprendemos a amar o Sol.


Começa com uma colisão.

As nossas vozes mesclam-se, as nossas partículas fremem de vida e vamos de encontro uns aos outros, regidos pelo acaso.
A solidez da sua existência e o calor do seu corpo contrastam brutalmente com a minha fragilidade translúcida.

Entrelaçamo-nos.

Seus ossos com os meus, sua pele com a minha, sua poesia desajeitada com a minha narrativa. Do ponto mais alto do telhado, nossas vozes descrevem espirais no vazio antes de afundarem delicadamente na água escura da Lagoa.

A consciência da sua proximidade me acalma.
Deveríamos ter sido amigos, mas até que não nos saímos mal assim.
Até que não nos saímos mal.


Começa com uma faísca,

uma faísca tímida, fragmento de luz contra a noite cerrada. O brilho laranja contrasta com o concreto cinzento do telhado. A vida, intragável, desce rasgando as nossas gargantas, mas estamos todos devidamente anestesiados.


Nós sorvemos o ar frio da noite e sopramos a bruma delicada que cobre as estrelas.

domingo, 6 de maio de 2012

Super lua


Olhou para o céu antes de sair de casa e pensou, sonhadoramente, que a lua estava bonita aquela noite. Só isso. Estava, então, longe de saber que era a maior lua do ano, a super lua, a que brilhava mais, isso e aquilo.

Soube e não deu a mínima.

Era Lua, e era uma lua bonita, gostava da forma como se escondia cheia de falsos ares de mistério atrás das nuvens espessas, nessa timidez calculada, timidez de educação. Admirava-a quando aparecia como Sol de meia noite e quando estava demasiado ocupada para bater à sua janela, admirava-a quando subia nos telhados - alto e mais alto até sumir de vista - e admirava-a quando mergulhava fundo e, insensata, se afogava no mar.

Pouco lhe importava que fosse a maior lua do ano;
a única condição que lhe impunha era que fosse lua.


Que viessem o azar, os desastres e as desventuras.

domingo, 22 de abril de 2012

Diogo Dias

Ela galgara a escadinha estreita aos pulos, dois degraus por vez, no receio de ser apanhada. O coração saltava no mesmo compasso nervoso que os pés descalços. Não tinha lá muita certeza se lhe era permitido ir ao andar superior; tinha a ligeira impressão - e secretamente o desejava - de que era justamente o contrário. De certa forma, estar cometendo um delito tornava aquela sua exploração do Mundo de Cima mais legítima; acrescentava profundidade à sua aventura, veracidade a seu descobrimento - o prazer da transgressão ruborizava suas faces com o sangue (coisa terrível) do próprio Hernán Cortés.

Ao saltar por fim o último par de degraus, pôs-se a devorar com os olhos, cobiçosa, o Novo Mundo que se estendia a sua frente. Correu à beirada da varanda e espiou o andar de baixo, encantada com a vista privilegiada das ébrias Oceânides que lhe oferecia seu pequenino e recém-fundado Reino.
Dançou triunfal e alegremente sobre a fina camada de poeira, rindo-se. Os mais graves cumprimentos à bela sinfonia da orquestra de tábuas carcomidas sob seus pés, etc etc.

Não demorou a descobrir as outras riquezas que aquela terra tinha a lhe oferecer e, nem bem seus olhos bateram na estante, atirou-se aos livros com uma voracidade peculiar aos bárbaros devoradores de homens. Eram edições velhas, cobertas de pó, que ela folheou com uma espécie de zelo impaciente. Deixou as palavras dissolverem-se em seus lábios, declamando baixinho um ou outro verso que lhe saltasse à vista. Fechou o volume com um estalo surdo e examinou embevecida seu tesouro, deslizando os dedos bem de leve pela lombada dos livros, invocando os nomes de Camões e Shakespeare e Jorge Amado.

(Disparou escada abaixo, ansiosa por comunicar seus achados a Polilla. Amava-a; sendo suas almas irmãs e solitárias e peregrinas, tornavam-se um pouco menos sós e um pouco menos perdidas. Tomou-a pela mão e apresentou, um tanto orgulhosa, o resultado de sua expedição. Dividindo o mesmo entusiasmo, as duas alternaram-se na leitura, uma à outra, dos trechos que lhe convinham, alheias brevemente aos festejos dos tritões e das ninfas, harmoniosos em sua embriaguez do mitológico tango argentino.)

Mas os cantos e as liras, elevando-se irresistíveis acima de suas vozes, acabaram por exercer sobre elas seu efeito. Sem o menor pudor, abdicaram da Nova Terra e lançaram-se com avidez ao mar.
Ficassem os descobrimentos aos descobridores, deixassem a colonização àqueles que se contentam com águas serenas e a visão eterna de um porto só.

Desceram às profundezas e dançaram a dança cigana
(com náufragos e divindades e heróis ainda por ser)
até o sol rair.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Dilúvio

Quanto tempo ali, esperando por uma brecha para se retirar, para escapar daquele falatório incessante? Uma eternidade procurando, virando com violência as páginas daquele seu Manual de Etiquetas mental atrás de uma forma delicada de escapar ao convívio social e ter um tempo a sós com todo tipo de coisa que vinha atormentando sua alma.

Recusara-se a sentar por uns bons 20 minutos, equilibrando o peso ora em uma perna, ora em outra, mas fora vencida pelo cansaço. Resignada, acabara por largar-se no sofá, o sorriso emplastrado no rosto, a cabeça girando da noite anterior. Desistira de fazer comentários pontuais, posto que acabavam por ser solenemente ignorados, ainda que não de propósito - eram 5 anos de histórias que aquela senhora devia a uma neta, e era preciso tirar o atraso.

De modo que ali se encontrava, torta e encurralada, ouvindo aquela chuvarada de histórias sobre o que bem poderiam ter sido bonecos de papel, figuras humanóides com tantos sentimentos e tanto colorido quanto folhas brancas arrancadas de um caderno. Letárgica. A cabeça girando, girando, e no fundo aquele punhado de impressões sobre meio século atrás; som ambiente. Música de elevador.

Gira, gira, gira.

As palavras jorravam daqueles lábios finos e secos, e uma puxava outra, e mais outra, até que a menina estivesse em vias de se afogar. E o rio ali, indiferente, sendo rio. Uma coisa ou outra se afoga, é a vida, e curso d'água nenhum nunca parou pra ficar lamentando a morte de ninguém.

Mas então, subitamente... foi proferida a sentença. E os bonecos ganharam vida e saíram no seu barco de papel a navegar por sobre as ondas, ouvindo ecos dos cantos das sereias e de dias distantes, manhãs em que crianças ansiosas, aos risos e de mãos dadas, saíam a passeio.

Sol alto, calor e o ruído metálico do bonde, e elas cantavam a plenos pulmões essa ou aquela música que soubessem de cor. Naquela época, o sol ia alto e o bonde passava cantando marchinhas de carnaval.

O mundo gira, e gira, e gira.

E então, subitamente... uma coisa assim, sobre crianças cantando para encurtar a viagem... uma coisa assim, enchendo seus olhos d'água e fazendo você chorar meio século de rio.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Black and blue my petals fall

Você disse que o verdadeiro poeta é o medíocre, porque a poesia que lhe falta no papel transborda em tudo que faz e tudo que diz. Você disse que a poesia ou é vivida, ou é escrita; o mais belo dos versos brota do mais insosso dos seres humanos.

Você disse, e eu tento me convencer de que o fato das palavras terem começado a faltar-me é maravilhoso, o reflexo de um provável aumento da beleza e da profundidade do meu cotidiano. Você disse, e você sabia tanto.

E eu tento.

Mas a verdade é que, por negligência,

Qualquer poesia de qualquer tipo com a qual eu pudesse ter sido agraciada se foi,



E neglicência é homicídio culposo,

E negligência é crime.