sábado, 25 de abril de 2015

   Você era que nem o quarto que eu encontrei naquela casa nova, numa rua que eu não conhecia, numa cidade que não existia. Um armário branco, gigante, com as gavetas meio emperradas. Aquela janela em que o sol se derramava o dia todo e reluzia nas paredes, no piso, na minha pele. O chão nu a não ser pela porção escondidinha embaixo do colchonete recém-trazido. Cheiro bom, de novo. Um monte de gente já tinha vivido ali, mas pra mim era novo, 'tava impregnado de novo. Era a sensação de passar a noite na casa de alguém, ou num hotel, ou qualquer lugar além do corredor, e demorar a dormir porque o travesseiro afunda engraçado e o colchão é um molde de outro corpo. Acordar meio atordoado, sem saber onde está, aquela onda súbita de euforia e ansiedade. Era continuar deitado quietinho na cama, debaixo do cobertor, só sentindo o cheiro de novo do lugar e se perguntando como que as pessoas conseguiam dormir ali todo dia, com aquelas medidas todas erradas e a sensação de ter fugido de casa e acordado do outro lado da fronteira. Isso era você.
   Não demorou muito e, na minha curiosidade, tentei abrir as gavetas; mas elas ameaçavam despencar se eu forçasse muito. Elas abriam só às vezes, espontaneamente. Só quando queriam. E aí era com violência, cuspindo todas as roupas fora. Com o tempo me peguei desejando que elas se mantivessem fechadas, porque odiava ter que catar as coisas atiradas pra fora. Mas isso era algo que eu não tinha como controlar. Restava só tentar arrumar a bagunça. Levantei um dia e assisti meu reflexo acordar do outro lado do quarto. Era um espelho amplo e ocupava a parede quase que por inteiro. Não dormi por uma semana. Com o tempo, quase esqueci que ele ficava ali. Lembrava às vezes e arriscava um sorriso, e ele me respondia e deixava de sorrir no momento em que eu desviava o olhar. O sol não entrava mais por causa das cortinas novas, e como eu mal saía, minha pele não reluzia mais. O cheiro de novo tinha começado a me deixar enjoada. Acordar num lugar novo todo dia fazia o meu estômago revirar de ansiedade. Comecei a desejar que ele tivesse cheiro de meu. Cheiro de casa. Mas mesmo cinco meses depois, eu me levantava ainda toda manhã com a cabeça girando. Isso era você. 
(...)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

    Meus sapatos estavam encharcados de água salgada e não é mesmo uma coisa muito inteligente andar de sapato assim na praia, mas não conseguia ligar muito pra isso no momento. Eu juro por Deus que estava tentando me concentrar em me sentir vivo e tudo mas só sentia mesmo o puta frio que tava fazendo. Não parava de tremer e fazer aquele barulho engraçado de dentes uns nos outros. Sempre me imaginava como uma daquelas dentaduras de brinquedo que aparecem nos desenhos e é só dar corda e elas andam pelos lugares. Só impulsionadas por aquela bateção de dente. Eu me sentia mesmo tão vivo quanto uma dentadura de plástico andando só porque deram corda. Pensei com saudade no edredom que tinha largado embolado em cima da cama antes de sair.  
    Mas valia mesmo ir ali, mesmo que fosse frio de doer, por causa do cheiro de sal e das cores. Não consigo pintar nada de jeito nenhum mas eu realmente gosto de cores. Só não consigo pegar elas na mão, assim, e jogar num papel. E elas mudam rápido, ainda mais no Oceano que não para de se mexer e era muito fácil perder alguma das cores se você se distraísse um minutinho só que fosse e não visse pra onde tinha ido. 
    Ela continuava em silêncio o tempo inteiro. De cabeça baixa, olhando o splashsplash que a bota dela fazia quando a água vinha. Queria mesmo saber o que que ela tava pensando, mas nunca dava pra saber porque ela era teimosa e gostava demais de ouvir splashes pra abrir a boca e falar qualquer coisa. Eu sou egocêntrico pra caramba, sou mesmo. Sou tanto que fico chateado da pessoa não me contar o que tá pensando. Mesmo se fosse uma coisa chata, eu ia querer saber. Daí ninguém sabe porque eu faço um monte de perguntas e a pessoa acha de verdade que eu sou muito simpático e atencioso mas é só que eu sou um tanto egocêntrico e fico querendo sempre saber tudo. Mesmo quando é coisa chata. Eu não insisto, porque não quero ser um pé no saco, se a pessoa não quiser falar. Mas que eu fico chateado, fico. Vai ver ela era egocêntrica que nem eu mas de um jeito diferente, em que não acha ninguém digno de saber das coisas dela porque é tudo tão precioso e tal, mas presta a maior atenção quando eu começo a falar do idiota do Simas e aquela mania dele de ficar arranhando a carteira com a régua, e de como um dia vou virar pra trás e socar a cara dele. Come as histórias todas que eu conto e fica quieta, como a gente fica depois do almoço quando tá inchado de cheio e vai fazer a sesta. Mas ela ri nas horas certas quase sempre e eu sou egocêntrico então continuo contando tudo mesmo assim.