domingo, 22 de abril de 2012

Diogo Dias

Ela galgara a escadinha estreita aos pulos, dois degraus por vez, no receio de ser apanhada. O coração saltava no mesmo compasso nervoso que os pés descalços. Não tinha lá muita certeza se lhe era permitido ir ao andar superior; tinha a ligeira impressão - e secretamente o desejava - de que era justamente o contrário. De certa forma, estar cometendo um delito tornava aquela sua exploração do Mundo de Cima mais legítima; acrescentava profundidade à sua aventura, veracidade a seu descobrimento - o prazer da transgressão ruborizava suas faces com o sangue (coisa terrível) do próprio Hernán Cortés.

Ao saltar por fim o último par de degraus, pôs-se a devorar com os olhos, cobiçosa, o Novo Mundo que se estendia a sua frente. Correu à beirada da varanda e espiou o andar de baixo, encantada com a vista privilegiada das ébrias Oceânides que lhe oferecia seu pequenino e recém-fundado Reino.
Dançou triunfal e alegremente sobre a fina camada de poeira, rindo-se. Os mais graves cumprimentos à bela sinfonia da orquestra de tábuas carcomidas sob seus pés, etc etc.

Não demorou a descobrir as outras riquezas que aquela terra tinha a lhe oferecer e, nem bem seus olhos bateram na estante, atirou-se aos livros com uma voracidade peculiar aos bárbaros devoradores de homens. Eram edições velhas, cobertas de pó, que ela folheou com uma espécie de zelo impaciente. Deixou as palavras dissolverem-se em seus lábios, declamando baixinho um ou outro verso que lhe saltasse à vista. Fechou o volume com um estalo surdo e examinou embevecida seu tesouro, deslizando os dedos bem de leve pela lombada dos livros, invocando os nomes de Camões e Shakespeare e Jorge Amado.

(Disparou escada abaixo, ansiosa por comunicar seus achados a Polilla. Amava-a; sendo suas almas irmãs e solitárias e peregrinas, tornavam-se um pouco menos sós e um pouco menos perdidas. Tomou-a pela mão e apresentou, um tanto orgulhosa, o resultado de sua expedição. Dividindo o mesmo entusiasmo, as duas alternaram-se na leitura, uma à outra, dos trechos que lhe convinham, alheias brevemente aos festejos dos tritões e das ninfas, harmoniosos em sua embriaguez do mitológico tango argentino.)

Mas os cantos e as liras, elevando-se irresistíveis acima de suas vozes, acabaram por exercer sobre elas seu efeito. Sem o menor pudor, abdicaram da Nova Terra e lançaram-se com avidez ao mar.
Ficassem os descobrimentos aos descobridores, deixassem a colonização àqueles que se contentam com águas serenas e a visão eterna de um porto só.

Desceram às profundezas e dançaram a dança cigana
(com náufragos e divindades e heróis ainda por ser)
até o sol rair.