segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Bom Motivo

Enroscou-se em torno de si mesma, com as próprias palavras ecoando em sua cabeça. Era sempre isso. Sempre desligava o telefone e ficava quieta, deitada, ouvindo o sangue pulsar em seus ouvidos. Às vezes por meio minuto, outras vezes até que caísse no sono.

Perguntou-se se ele também ficava assim, meio atordoado. Se voltava ao que estava fazendo de imediato ou se também precisava parar por alguns instantes e respirar.

Por vezes o que ela repassava em sua cabeça fazia seu rosto arder. Sabia que estava corando mesmo sem olhar no espelho, mas às vezes se levantava e ia até ele, depois do que parecia uma eternidade, só para ter certeza. Fitava seu reflexo longamente, o olhar deslizando pelas bochechas rosadas, as olheiras, e então deitando-se em si mesmo, sendo tragado pelos olhos escuros e fundos, tão fundos que os raios de sol perdiam-se no meio do caminho. Normalmente os olhos dela não eram fundos assim, mas ela olhava e achava bonito.

Nessas horas ela olhava e achava tudo bonito.

Em ocasiões menos felizes, o que fora dito deixava seu coração apertado, e ele ia apertando até sumir. Ela não levantava. Ela não se olhava no espelho. Ficava encolhida no escuro, refletindo, por mais que doesse. Nessas horas, pensava tanto que pensava que nunca mais seria capaz de se levantar dali, com o peso de todos aqueles pensamentos acumulado sobre ela. Às vezes ficava escondida até amanhecer, ou até não ser mais capaz de se lembrar exatamente do que tinha sido dito e as palavras terem-se misturado até não fazerentidalgum.

Era sempre isso, ponderou nos longos minutos em que permanecera imóvel e enroscada como um gato, e no entanto dessa vez era diferente. Nada nela se encontrava alterado. Dessa vez estava tudo bem - e sentia isso mais do que sabia. À medida em que repetia o que dissera, sentia-se mais capaz de honrar cada sílaba, cada fonema, cada mínima vibração de suas cordas vocais.

Ela espreguiçou-se, pôs os pés descalços no chão morno e deslizou suave e despreocupadamente para fora do quarto.

Sabia que tudo ficaria bem, independente do rumo que as coisas tomassem - sentia-se tão forte e capaz que beirava a insensatez.

Era amiga dele, o seria sempre e para todo o sempre,

E isso era menos promessa do que era certeza.

domingo, 23 de outubro de 2011

Boletim de Ocorrências

Ali estavam as dolorosas marcas do assassínio, provas inquestionáveis de um crime passional e sangrento, tão nítidas que seria impossível que passassem despercebidas por muito tempo.

Pensou que deveria ser presa. Provavelmente seria.

Quanto tempo até sua condenação? Massacrada por um júri popular, pela opinião pública nacional - talvez até mesmo a internacional - e eternamente atormentada pela própria consciência, muito embora... crimes como aquele acontecessem todos os dias, refletiu hesitante.

Sim, era verdade, aconteciam todos os dias, mas não por parte dela, não por mãos macias e pálidas - e jovens - como as dela.

Seria uma escândalo. Os olhares acusadores, as bocas salivando de prazer por terem uma história assim para contar. A hipocrisia.

Quem a delataria?

Porque eventualmente o fariam, era questão de dias. Talvez já o houvessem feito. Suspirou. A identidade do traidor não importava, decidiu por fim. Aquela narrativa escabrosa não precisava de mais detalhes.

Sentou o corpo retesado e estranhamente aprumado na poltrona diante da porta. O sangue brotava das bordas das unhas roídas até o sabugo, mas ela nem mesmo percebeu. Tinha o olhar colado à porta, esperando que ela fosse posta abaixo a qualquer momento por oficiais de justiça, na expectativa de ouvir botas pesadas estalando a madeira, vozes grossas e imperativas.

O sangue brotava de seus olhos, escorria pelo rosto contorcido de ansiedade. Cortes abriam-se no pescoço alvo, nas pernas comportadamente cruzadas, no peito que subia e descia de forma irregular e frenética.

E ela nem mesmo percebia, os olhos arregalados, insones, vidrados.

Quando, passados alguns dias, o senhorio invadiu o aposento depois de não ter obtido resposta às batidas insistentes, encontrou apenas uma enorme poça de sangue.

domingo, 21 de agosto de 2011

Festa do Chá

Eu estava entre xícaras de chá e doses de café, em uma cozinha em que tudo cheirava a pão com manteiga e os talheres, ao bater na porcelana, teciam um elaborada discussão em torno do último capítulo da novela. Tudo tão distante e tão familiar, do lado de fora de uma loja de antiguidades.

Por quantas mãos aqueles artefatos, dispostos desordenadamente na vitrine empoeirada, não teriam passado? Quantas vozes não teriam ouvido, quantas confissões, lágrimas, silêncios, risos, trivialidades não teriam sido testemunhadas pelas peças que agora descansavam placidamente?

Tantas tardes frias e pés gelados e sem meia, arrastando-se pelo piso de pedra; a chuva lá fora e lábios arroxeados ávidos pelo bálsamo recém-saído do fogo.

Vapor enchendo a cozinha…

Vida agridoce, meio-amarga; algumas colheres de açúcar, mas olhe lá, não vá pôr muito, que não faz bem à saúde.

Meia vida, vida inteira do lado de dentro de uma loja de antiguidades.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Lembram da sombra, mas

A menina lançou um olhar triste e resignado para o que sobrara daquele ser outrora tão cheio de vida, com um nó na garganta.

Não havia lágrimas; Os olhos secos, arregalados e sem vida olhavam fixamente para o túmulo daquela a quem cumprimentava todos os dias com um sorriso e algumas palavras alegres e sem sentido, palavras soltas.

Mas ela não achava ruim, aquela conversa mole; em quase 3 anos, não houvera uma manhã sequer em que a encontrasse de mau humor.

Dançara, chorara, cantara e rira na frente dela.

Ela não dançava junto, mas não reclamava. Não sabia cantar e não tinha muito a dizer, mas ouvia com toda a delicadeza do mundo.

Não se abalava, era sempre calma, sempre sensata.



"Eles a mataram", murmurou por fim para o menino a seu lado.



Ele ficou em silêncio por uns instantes, gravemente, e seus olhos seguiram os da menina. Por fim, perguntou em um fiapo de voz:

"Quando foi isso?"

"No Carnaval."

"Entendo."

"Um dia eu saí de casa, e-"

A voz dela falhou. Estava inconsolável.

Ele balançou a cabeça, indignado.

"Isso era tudo o que havia restado dela."




O menino sorriu meio sem graça, e acrescentou, em tom de confissão - a culpa estampada no rosto aflito:

"Se você não tivesse falado, eu nem haveria percebido."

"Como n-?"
Sua voz estava trêmula de incredulidade diante da frieza e insensibilidade do amigo.

Ele deu de ombros, como que se desculpando.




Calaram-se e puseram-se a observar a cova imunda.



"Então é por isso que aqui tinha sombra", ele constatou, rompendo o silêncio.


Ela esboçou um sorriso, hesitante.



"É, vou sentir falta dela. Era uma boa árvore."


Deram as costas ao canteiro e foram embora.

Lembram da sombra, mas não lembram da árvore

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Inocência

Ela protestou veementemente, agarrada ao braço dele; implorou no tom de voz mais doce e suave que conseguia alcançar naquele estado de indignação.

Ele balançou a cabeça e tentou afastá-la de forma rude. Não, a resposta era não.

Ela recusou-se a largá-lo e agarrou-se ainda mais às costas nuas bronzeadas pelo sol.
"Por favor", suplicou de maneira irresistível.

Ele hesitou um pouco, mas voltou a negar-se terminantemente.

"Eu não gosto."

Ela sorriu com o canto dos lábios e voltou a subir em cima dele.




"Será a última vez. Na minha vida e na sua."





E então a menina de nove anos ficou de pé nos ombros do amigo um ano mais velho, com o maior sorriso do mundo, e deixou-se cair na água da piscina embalada pelo som das próprias risadas.