sexta-feira, 4 de junho de 2010

Das profundezas da água escura e imunda,

em meio ao cheiro acre do sal misturado aos restos de comida apodrecida, um par de olhos castanho-escuros a encarava.

Podia ver a menina por detrás deles, em parte, se apertasse bem seus olhos cansados e os forçasse a prestar atenção. Às vezes perdia a concentração e tudo que conseguia ver era o nada cor de piche, levemente abalado pelas ondas suaves, em volta dela.

Talvez outrora houvesse peixes ali, peixes gordos e arrogantes, de cores bonitas, como os que vira na vez em que colara o nariz franzino contra a vitrine da loja de animais, sem coragem de adentrá-la. E talvez houvesse um mercado, com gente vendendo peixe, gente de todos os lugares, com cheiro e cor de café, gengibre, canela, tudo misturado. Ou até gente com cheiro e cara de peixe, os olhões esbugalhados e parados das senhoras gordas e arrogantes como os animais que tinham ido comprar.

Agora era tudo cinzento, e a neblina, permanente. Os cachorros esqueléticos faziam parte da paisagem, e se encarregavam de manter as latas de lixo reviradas e seu conteúdo espalhado por todos os cantos. Havia ratazanas dividindo o espaço com eles, bichos enormes de olhos malvados e maiores que seus dois punhos juntos.
Ouvia os passinhos curtos delas batendo no metal, cadenciadamente.

Estava tão frio. Era ela mesma a noite, com seus ossos de gelo.
Esfrega uma mão na outra, soprando-as. Um fiapinho de fumaça escapa por entre seus lábios arroxeados, e sobe aos céus, um arremedo de vida contrastando contra o beco escuro em que se enfiara.

A menina volta os olhos inexpressivos para a ratazana que se aproximara sorrateiramente. Os bigodes retorcidos se agitam no ar, impacientemente, e lhe faltam dois dedos da pata esquerda.
Antes tinha medo delas. Até descobrir que se ficasse bem, mas bem quieta, não fariam nada; estavam famintas, em busca de um pouco de diversão e a oportunidade de arrancar mais pedaços umas das outras.

Não sentia mais seus dedos, nem frio, sentia nada. Era bom. Não queria mais sentir...
A criança prende a respiração, ansiosa e desconfortável, quando a situação se estende por vários e longos minutos. Aquela estava encarando-a com os olhinhos embebidos em sangue brilhantes de vívido interesse.

Havia aquela sensação fraca e entorpecida de medo, mas duvidava que pudesse se mover.
Estava com sono. Queria dormir. Não havia som nenhum, era... engraçado...

Até a vozinha esganiçada romper o silêncio.

"Sabe caçar baleias?"