quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Dilúvio

Quanto tempo ali, esperando por uma brecha para se retirar, para escapar daquele falatório incessante? Uma eternidade procurando, virando com violência as páginas daquele seu Manual de Etiquetas mental atrás de uma forma delicada de escapar ao convívio social e ter um tempo a sós com todo tipo de coisa que vinha atormentando sua alma.

Recusara-se a sentar por uns bons 20 minutos, equilibrando o peso ora em uma perna, ora em outra, mas fora vencida pelo cansaço. Resignada, acabara por largar-se no sofá, o sorriso emplastrado no rosto, a cabeça girando da noite anterior. Desistira de fazer comentários pontuais, posto que acabavam por ser solenemente ignorados, ainda que não de propósito - eram 5 anos de histórias que aquela senhora devia a uma neta, e era preciso tirar o atraso.

De modo que ali se encontrava, torta e encurralada, ouvindo aquela chuvarada de histórias sobre o que bem poderiam ter sido bonecos de papel, figuras humanóides com tantos sentimentos e tanto colorido quanto folhas brancas arrancadas de um caderno. Letárgica. A cabeça girando, girando, e no fundo aquele punhado de impressões sobre meio século atrás; som ambiente. Música de elevador.

Gira, gira, gira.

As palavras jorravam daqueles lábios finos e secos, e uma puxava outra, e mais outra, até que a menina estivesse em vias de se afogar. E o rio ali, indiferente, sendo rio. Uma coisa ou outra se afoga, é a vida, e curso d'água nenhum nunca parou pra ficar lamentando a morte de ninguém.

Mas então, subitamente... foi proferida a sentença. E os bonecos ganharam vida e saíram no seu barco de papel a navegar por sobre as ondas, ouvindo ecos dos cantos das sereias e de dias distantes, manhãs em que crianças ansiosas, aos risos e de mãos dadas, saíam a passeio.

Sol alto, calor e o ruído metálico do bonde, e elas cantavam a plenos pulmões essa ou aquela música que soubessem de cor. Naquela época, o sol ia alto e o bonde passava cantando marchinhas de carnaval.

O mundo gira, e gira, e gira.

E então, subitamente... uma coisa assim, sobre crianças cantando para encurtar a viagem... uma coisa assim, enchendo seus olhos d'água e fazendo você chorar meio século de rio.